breu (2017)

photography

A fotografia de Hirosuke Kitamura produz uma dupla transformação no espectador: ela modifica a maneira de olhar a cidade de Salvador e muda a percepção sobre o que é a própria fotografia.

Nas fotos de Kitamura, o breu – a escuridão, as penumbras, as sombras, a luz mal projetada nos corpos, nas reentrâncias de muros, nos objetos – revela uma cidade que apenas aparentemente se deixa mostrar ao Sol. É uma outra Salvador que se expõe: silenciosa, misteriosa, furtiva, ameaçadora, fascinante. Ouvimos os passos da prostituta que caminha sobre o paralelepípedo, sentimos o cheiro da maresia, podemos tocar a tecitura da fibra do côco.

A fotografia registra o entorno, mas o faz como um instrumento ao mesmo tempo poético e cirúrgico, que expõe, explicita aquilo que, paradoxalmente, o excesso de luz só faz ocultar. Pouca luminosidade, muita, muita cor. O resultado é uma explosão de uma fantástica  humanidade nas fotos, que não é a do trio elétrico, da exuberância de corpos sarados exalando energia. Não. É a humanidade a um só tempo forte e precária, que se revela no silêncio, no detalhe, no equilíbrio frágil de vidas nuas que teimam em percorrer guetos e vielas. A fotografia não se contenta com registrar, ela provoca os sentidos e nos convida a entrar num teatro só para loucos.

Há um mundo que palpita no escuro, e que permanece à espera de quem possa e queira descobri-lo. A fruição desse mundo adquire uma dimensão religiosa (no sentido de re-ligare, fazer a reconexão com as forças primordiais do universo), plasticamente traduzida nas fotos que evocam a natureza primitiva, as entidades do candomblé, os ciclos de vida e morte gravados nos corpos capturados pela câmara.

Para Hirosuke Kitamura, o jogo do claro / escuro não é uma simples técnica, um artifício de linguagem: é a própria razão de ser da fotografia, mas que transcende a exposição do registro da imagem para sugerir o encanto do mistério que existe em todas as coisas, mesmo nas mais banais, e na própria vida.

José Arbex  2017